Uma das metas que eu tinha pra 2024 era a clássica começar a correr. Como forma de comprometimento, comentei com amigas, baixei planilhas para iniciantes e cheguei até a dizer que no final do ano estaria correndo uma maratona. Acho que daqui não preciso me alongar.
Corta pra novembro: não tinha mais cabimento eu culpar o antigo tênis, que tanto me serviu, pela minha ausência na rua ou na esteira da academia.
Como argumento para convencer alguém ou a si mesmo de que há dissonância entre vontades e interesses reais, se diz que “quem quer de verdade, vai lá e faz”. Por algum tempo também adotei a ideia, o que me colocava em posição mais ou menos rígida quanto às nuances existentes entre vontade e realização. A psicanálise, inclusive, foi uma flexibilizadora nesse aspecto.
Longe de mim criticar a praticidade, pelo contrário. Concordo plenamente que a falta de ação e objetividade é, em alguns casos, reveladora, sobretudo diante de possibilidades palpáveis. Não agir quando os meios são favoráveis é uma escolha que implica não ceder de uma posição, e sim, pode indicar que o que se diz querer, talvez não seja tão almejado, ou até seja, desde que exista pouco ou nenhum tipo de esforço envolvido. É à partir deste ponto que a vida e a clínica trazem narrativas diferentes daquelas que não consideram umas peculiaridades.
Dizer que quem quer simplesmente faz acontecer joga total responsabilidade sobre o sujeito e afirma que a vontade consciente, tida como genuína, é o que possibilita movimentos em direção a uma meta, o que também parte de uma premissa mais prática e linear. Acontece que, atropelando pormenores e super valorizando a resolução prática, se enterram neuroses que adicionam camadas entre o “eu quero” e o “vou”. Surge a falsa dicotomia tudo ou nada.
Vamos pro Freud, que diz em “Uma dificuldade da psicanálise" (1917):
"(…) o Eu não é senhor em sua própria casa (…) Poucos homens puderam discernir a importância enorme que a admissão de processos mentais inconscientes teria para a ciência e a vida. Acrescentemos logo, no entanto, que não foi a psicanálise que deu o primeiro passo neste sentido. Filósofos de renome podem ser citados como precursores, sobretudo o grande pensador Schopenhauer, cuja “vontade” inconsciente se equipara aos instintos da mente na psicanálise.”
Temer simplificar demais e se pendurar na fragilidade do Eu são justificativas para o uso das próprias questões como boia de salvação contra mergulhos necessários e saltos mais arriscados? Não, mas são um convite.
Um dos maiores impasses que escuto nos atendimentos é justamente esse. A pessoa diz pretender algo e, com o discurso, chega a se encaminhar em direção àquilo, mas quanto mais se aproxima, mais é tomada por outra vontade/necessidade: a de se defender e ponderar infinitamente se é a hora certa, se é a coisa certa, se é prioridade, se haverá arrependimento e assim por diante. Falei brevemente sobre isso >aqui<.
Daí, algumas considerações. Se o “eu quero” é dito até com cansaço pelo tanto de vezes que foi repetido, se muito tempo passa e a situação não muda, isso também pode estar sugerindo algumas comodidades e aquela tentativa segura de saída sem implicação. Grudamos na perspectiva de que, naturalmente, está tudo sempre mudando, que as coisas estão se ajeitando sozinhas, o que é pra ser é, e seja o que Deus quiser.
Outra coisa relevante é que nem sempre o ponto em que a realização é factível foi alcançado, e de repente nunca será, mas é daqui que surgem várias singularidades bem preciosas. Querer, por vezes, é expressão do desejo, o que denota que por detrás dele existe uma série de construções e concepções que aproximam e ao mesmo tempo impossibilitam qualquer tipo de concretização - até pra que a gente continue se movendo.
Quando eu decidi enfim agir a partir da vontade - crescente, bom pontuar - de correr, a compra de um tênis adequado aconteceu rapidamente, mas isso não significa que antes eu não queria o suficiente. Na verdade, quando parei de ficar ruminando muito a respeito, percebi que sair pra correr era bem simples mesmo, difícil - mas não impraticável - era lidar com o fato de que teria que ser com as minhas próprias pernas.
Mais, ainda
Quem é que banca a autenticidade?
Sair da cabeça e ocupar o corpo
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Até a próxima!
melhor texto que li nos últimos dias por aqui, obrigadaaa!
como bom descobrir psicanalistas que trazem a clínica pro nosso cotidiano :)
Adorei, Carolina. Como sempre, você traz muita sensibilidade nas suas reflexões. Também amo a corrida e já me aventurei em algumas corridas de rua, pretendo voltar ano que vem. É realmente simples, mas difícil por ser com nossas próprias pernas (amei essa parte, rs).
E obrigada por recomendar meu texto. Um abraço! 🌻