Último post do ano coincidentemente é o 24º oficial aqui da news! Até considerei trazer a longa lista de favoritos, mas enquanto ia construindo o texto internamente, dessa vez achei mais legal ficar com a palavra, ou no caso, uma expressão que me tocou delicadamente e ficou comigo desde que a conheci.
Pra mim, A Transitoriedade é um dos textos mais bonitos do Freud, um dos que consulto quando preciso lembrar a beleza das passagens e um dos que super combinam com o clima de final de ano.
Gosto quando ele diz:
“Quanto à beleza da natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, de modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. Tampouco posso compreender melhor por que a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam perder seu valor devido à sua limitação temporal.”
2024, apesar de par, foi um ano bastante ímpar por aqui. Revelou coisas que não encaixavam, peças que ficavam de fora, sobras sem um destino aparente. Foi de pernas pro ar, de ponta-cabeça, de circunstâncias que exigiram coragem e a dose de determinação possível diante das pegadinhas do inconsciente.
Quando penso nos momentos mais perceptivelmente positivos, a tristeza sutil pela impermanência das coisas bonitas não se destaca diante do encanto, do sentimento bom que envolve as lembranças. Devo isso a esse “entendimento”, à confiança construída na capacidade para lidar com os fins naturais.
Tentando fazer com o tempo a tal da vida bem vivida, me investi na retomada dos estudos da filosofia e sigo me aventurando na língua que me transporta para um dos mundos que mais admiro: o japonês. É uma diversão, uma alegria, uma expansão que trouxe para meu pensamento expressões singulares e lindas, como a mono no aware - 物の哀れ.
“(...) podemos, em uma primeira tentativa, sintetizá-lo da seguinte forma: mono no aware é uma interjeição que advém da profunda melancolia que sentimos diante da natureza passageira das coisas do mundo.”
Na pesquisa que acabei me animando a iniciar, enxerguei uma relação com o texto do Freud e, para seguir, vou compartilhar trechos de outro artigo que curti bastante: Mono no Aware e sua relevância filosófica: a melancolia na poética japonesa, de Diogo César Porto da Silva.
“(...) em suas pesquisas sobre o mono no aware, todos eles (autores previamente citados) se dedicaram à leitura do pensador, filólogo e poeta do Japão da era Edo (1603-1868), Motoori Norinaga (1730-1801).
(...) Como Watsuji apontou na citação com a qual iniciamos nossa investigação, o “mono” presente na expressão é compreendido por Norinaga como “coisa”, mas em um sentido amplo, como coisas que ouvimos, vemos e experienciamos. Contudo, encontramos as maiores divergências na tradução de “aware”, não somente por ela ter se originado de uma interjeição, mas principalmente por ela intencionar dizer uma profunda emoção ou, mais precisamente, a comoção ela própria ou, ainda, o ato de ser (co)movido profundamente. Desse modo, podemos resumir, novamente, mono no aware como: a profunda comoção desperta pelo encontro com algo comovente.”
Andar aqui pelo Rio, em algumas circunstâncias, causa bastante de um efeito semelhante em mim. Diria que isso foi potencialmente curativo. Quando as caminhadas têm uma história vindo de algum canto, quando me deparo com algo antes não visto em cenários que passo corriqueiramente, a comoção parece um lembrete de que a vida íntima segue acontecendo, apesar de tudo que não irá acontecer mais.
Lembro de microcenas únicas, como o dia em que uma menininha agarrou a Nina — minha cachorrinha — em um corredor aqui do prédio, sem medo algum, tão carinhosa. Acho que aquilo foi mono no aware.
“Ao se encontrar com um evento pelo qual deve-se alegrar-se, alguém sente-se alegre; tal pessoa se alegra por entender a essência (kokoro) do evento pelo qual deve-se alegrar-se. Do mesmo modo, ao se encontrar com um evento pelo qual deve-se entristecer-se, alguém sente-se triste; tal pessoa se entristece por entender a essência (kokoro) do evento pelo qual se deve entristecer. Assim, o que chamamos de ‘conhecer mono no aware’ é compreender a natureza do evento (koto no kokoro), alegre ou triste, ao ser tocado por ele. Quando não se sabe a natureza do evento, nada pensamos ou sentimos (kokoro ni omou koto nashi), porque não nos entristecemos ou nos alegramos. Sem pensamentos e sentimentos, cantos (uta) não vêm à tona. (IS 282).”
Durante a passagem dos meses, percebi que me soltar para sentir e ter onde transformar algo disso em uma narrativa própria foi — e segue sendo — bastante importante. Quando tive a impressão de que ficaria, de algum jeito, presa nas tormentas, lembrar de mono no aware, mesmo em seu aspecto melancólico, foi um alívio.
Em 2024, os tons felizes e tristes de cada acontecimento ficaram mais nítidos. Uma hora predominava um, outra hora o oposto, mas hoje percebo que isso não os tornava menos significativos. Precisei escolher mais ativamente para onde ia minha atenção, revi edições generosas que fazia de situações não tão legais, fiz meus registros mentais quando entendia que algo precisava ser aproveitado em um período mais específico de tempo e, assim, chego aqui e retorno a Freud:
“Contudo, será que aqueles outros bens, que agora perdemos, realmente deixaram de ter qualquer valor para nós por se revelarem tão perecíveis e tão sem resistência?”
Hoje acredito que não. Que mesmo o que sabemos que irá acabar não deve ser sempre evitado ou mal vivido, mas sim apreciado pela potência do toque sutil, o brilho por vezes tão rápido. Mais um ano que passa. Que possamos permitir a comoção enquanto o próximo começa.
“A flor é maravilhosa porque floresce e extraordinária porque cai” (Zeami Motokiyo)
Mais, ainda
Continuação é poder. Episódio muito bom do podcast da
Adoro o trabalho da Anna Ligia. Aprendi e me encantei muito no perfil dela durante o ano - @komorebitranslations
Aos interessados pela psicanálise, um bom caminho: :)
Um obrigada a todo mundo que chegou, os que generosamente ficam e os que partiram também. Se você gosta do que vê aqui, pode demonstrar seu carinho curtindo, comentando e compartilhando pro Substack entender que mais gente pode sentir o mesmo ;)
Até a próxima! 🌸
Esse texto do Freud também é um dos meus favoritos! Amei a costura que você fez com esse outro termo que ainda não conhecia! Muito lindo <3
Que honra estar aqui, Carolina! Um grande abraço! 🤍