Duas semanas atrás, assisti Dias Perfeitos, e desde então, não se passou muito tempo sem que eu tenha lembrado de algum pedacinho desse filme maravilhoso ou não tenha usado o fofo Hirayama como referencial de calma e dedicação quando tudo parece correr ou ameaçar desmoronar.
Pensei muito na forma como nos curamos do que impede pequenas satisfações, como cultivamos bons princípios e tornamos a vida suportável, até feliz quem sabe. Quando falo de cura, me refiro ao que serve à nossa sensação de bem-estar em meio a todas as adversidades inerentes ao pertencer a esse mundo. Cada vez mais, tenho entendido a cura como um “apesar de”. Já que não é possível que fique tudo bem o tempo inteiro, que seja viável o trânsito entre o contentamento e as frustrações que compõem o todo. Embora eu sinta que de vez em quando a criatividade e a autonomia parecem falhar neste sentido, são obras como essa que me fazem continuar acreditando que podemos tratar do que aflige mente e coração através de incontáveis formas.
Geralmente, harmonizo com ideias que vão contra a corrente da produção demasiada ou dos exageros em qualquer sentido. Fazer coisas demais, “ter que” demais, manter uma vida pautada em expansões sem métrica, se achar em meio a prazeres que duram cada vez menos são conceitos que, por convicções pessoais, não permito mais que morem em mim e nem alimentem tantas cobranças.
É claro que não é sem uma sensação de inadequação ou de estranheza que experimento minhas escolhas em torno da discrição, das sutilezas, do jeito mais devagar ou low profile de ser. Também já tive minha fase do lado oposto; durou pouco, trouxe coisas diferentes, mas começou a conflitar com a noção que tenho do que é ser eu mesma - embora eu nem sempre saiba o isso significa.
No longa, depois de um tempo, a gente entende que o protagonista deixou uma certa vida pra trás, optou pela renúncia que, certamente dolorosa, por outro lado indica o acordo com algum princípio inegociável. Hirayama decidiu escolher um caminho, se dedicar a ele e fazer dos seus dias aparentemente banais, “dias perfeitos”, e essa é uma das coisas mais bonitas representadas ali.
Durante a semana, ele não leva o relógio pro trabalho, parece que prefere não se ater a uma lógica temporal, com hora exata pra começar ou terminar os afazeres. Começa quando precisa, termina quando termina, aprecia e registra o que há entre uma coisa e outra e isso se reflete em uma organização natural que chega a ser tão comovente quanto o apreço que ele tem pela música e pela literatura, suportes que o acompanham em seus pequenos rituais.
Pra mim, o filme transmitiu muito a ideia de que podemos, a qualquer momento, repensar importâncias pra vida e construir rotinas em torno de uma presença satisfeita, suave, mais entregue ao que acreditamos, com áreas para apreciação de cada momento, aceitação de um “a menos”, confiança para sobreviver a falta do que não se vai sem marcá-la. Suponho que mencionar a cura é falar de desapego também, porque de vez em quando o sofrimento não passa de um abraço muito apertado em algo que escapa entre as mãos.
“Vai com calma, isso vai ficar nojento outra vez.”
É isso que um colega fala pro Hirayama quando vê que ele está se dedicando ao trabalho repetitivo com muito zelo, e como resposta, o protagonista apenas continua a limpeza, com a meticulosidade de quem sabe o que e para quê faz determinada atividade. Um homem de poucas palavras e de muitos gestos marcantes, que usou como antídoto para o que poderia ser entediante, aparentemente vazio ou sem sentido, um olhar carinhoso para o que ninguém mais vê. Retirando a anestesia de vista, é assim que ele se relaciona com o mundo.
Agora me pego admirando a cor do chá, as folhas de um livro balançando com o vento, a luz que bate na pia da cozinha pela manhã, a sombra da luminária projetada na mesa. Foi uma experiência e tanto, uma meditação num momento muito bem-vindo. Hirayama me ensinou que deve existir um jeito mais leve de viver a vida e com isso despertou a vontade de descobrir qual é. Descobrir. Não sei dizer exatamente por onde, vou precisar me comprometer com o experimento, mas não quero mais acreditar numa vida que seja só correr sem chegar em lugar algum, sem postura, sem atenção ou apreço às minhas escolhas. Pedindo licença pra usar o meme namore alguém que… namore alguém que te olha como o Hirayama olha pra estrada enquanto escuta Feeling Good e Nina Simone canta:
Sleep in peace when day is done, that's what I mean
Mais, ainda
A musa Isabela Boscov entrevistou o Wim Wenders. Uma graça.
Amei quando descobri que os trechos de sonhos foram feitos com obras da Donata Wenders, esposa do diretor.
Kōji Yakusho on finding happiness in simplicity, Perfect Days, and working with Wim Wenders
Na entrevista acima, Kōji fala sobre a descoberta de komorebi (木漏れ日), a beleza dos raios de sol atravessando as folhas das árvores <3
A Sofá da Surina, da
, tem sido uma das minhas newsletters favoritas e eu acho que ela tem tudo a ver com Dias Perfeitos :)A Boa o Suficiente é minha tentativa de manter a chama blogueira dos anos 00 acesa, fazer jus ao prêmio que ganhei na 4ª série por uma redação e, quem sabe, causar algum efeito positivo nas pessoas que se dispõe a ler o que compartilho nos textos.
Se você gosta do que vê aqui, pode demonstrar seu carinho curtindo, comentando ou compartilhando.
"Suponho que mencionar a cura é falar de desapego também, porque de vez em quando o sofrimento não passa de um abraço muito apertado em algo que escapa entre as mãos". Adorei o texto, Carolina! Me identifiquei com várias das coisas que você escreveu e o filme é uma coisa linda demais né <3
Li várias edições do Sofá da Surina hoje e tava pensando exatamente a mesma coisa, que os textos dela me fazem lembrar muito do filme! (E não conhecia o trabalho da Donata Wenders, obrigada pela dica!)
Carolina, adoro te ler! A tentativa de causar algum efeito positivo nas pessoas foi bem sucedida por aqui. Obrigada! :)