22 | Quando o familiar e o estranho se encontram
Uma pequena lista de favoritos do terror
“A necessidade de explicação, de encontrar sentido para o vivido, mobiliza-nos intensamente e costuma ser o primeiro e mais forte movimento. Eis porque toda heroína de filme de terror, ouvindo estranhos sons no porão, desce, insensata, do segundo andar até lá, em plena tempestade, armada apenas com uma vela.
Responde a uma necessidade análoga à redução da imensa estranheza, muitas vezes causada por nossos sentimentos, a explicações neuroquímicas. Esquecemos que assim procedendo, apesar de adquirirmos conhecimentos palpáveis sobre nossos afetos, nos perdemos dessa coisa desregulada e estranha que nos habita, o mais humano em nós.”A Paixão, Marcus André Vieira
Coisas de terror estiveram presentes na minha vida desde cedo. O fascínio pelas capas de filmes nas locadoras, o aluguel de alguns títulos um tanto inadequados para a idade na época (como Hellraiser), os jogos que me deixavam vidrada não só pela experiência de jogá-los, mas também pelo prazer de folhear seus guias cheios de detalhes. Encontros com amigas para sessões de slashers que nos faziam ver coisas nas sombras depois, livros que tornavam tensa a virada de cada página… Experiências inquietantes, como tantas que procedem do gênero estético que nos confronta com vulnerabilidades tão peculiares.
Dois filmes logo me marcaram: Colheita Maldita II e A Tempestade do Século, ambos baseados em obras de Stephen King. Com o passar dos anos, tendo como indicativo o que senti ao vê-los, fui entendendo melhor o que me entretém e o que é pura tortura visual e psicológica. Graças ao maravilhoso Does the Dog Die?, site colaborativo onde se pode pesquisar de antemão o conteúdo sensível de um longa, hoje raramente me submeto a algo que vá incomodar demais — a menos que a curiosidade grite.
Em seu famoso texto O Infamiliar, Freud escreve:
O infamiliar da ficção — da fantasia, da criação literária — merece, de fato, uma consideração à parte. Ele é, sobretudo, muito mais rico do que o infamiliar das vivências. Ele não só o abrange em sua totalidade, como é também aquele que não aparece sob as condições do vivido. (...) O resultado paradoxal que ressoa aqui é que, na criação literária, não é infamiliar muito daquilo que o seria se ocorresse na vida, e que na criação literária existem muitas possibilidades de atingir efeitos do infamiliar que não se aplicam à vida.
A realidade, com suas ameaças mais diretas, já oferece vários motivos para temer. Algumas produções prezam pela evocação daquela angústia que imobiliza por não encontrar referências diretas no que já foi experenciado, mas por outro lado, essas também colocam a imaginação do próprio espectador, leitor ou jogador a serviço de um encontro com partes menos expostas, identificáveis ou facilmente manejáveis de si, e é justamente de tal evento que surgem novos e quem sabe, proveitosos estranhamentos.
“Nossa atração pelo terror denuncia que ainda não estamos completamente conformados com o que a realidade nos coloca diante dos olhos.”¹
O que me faz apreciar a categoria 👻
Possessão – Quase desisti de ver, de tanto que dizem que é horrível e pesado. Talvez seja um pouco, rs, mas que bom que venci a resistência. Acabou se tornando um dos meus favoritos, e hoje recomendo pra todo mundo como uma das representações mais intensas e perturbadoras da histeria clássica que já vi.
Os Últimos Dias de Laura Palmer – Caraca. Além do enorme spoiler sobre a série, não sei se faz muito sentido assistir sem ter visto Twin Peaks até pelo menos o oitavo episódio da segunda temporada, mas é inegável o quanto Lynch se dedicou a entregar o que faz de melhor: provocar aversão. As atuações de Sheryl Lee e Ray Wise trazem uma tristeza apavorante.
Cisne Negro – Já pode chamar de clássico? Adoro tanto quanto Perfect Blue, que abriu o post. Vê-los antes do contato com a psicanálise foi como me preparar sem querer para o que eu viria a estudar.
A Casa de Cera – Assisti várias vezes com amigas e se não me engano era um favorito entre a gente.
Uzumaki – O alívio por Junji Ito ter optado pela arte e não por outros caminhos pra dar um destino àquilo que se passa na própria cabeça. Viva a sublimação.
Saboroso Cadáver – Tive que pular um capítulo inteiro porque não dei conta, mas foi uma leitura animal. Entendedores entenderão.
A Vegetariana – "Foi tudo tão real. A sensação de mastigar carne crua, o meu rosto, o brilho dos meus olhos... Difícil explicar. Era familiar e desconhecido ao mesmo tempo… Essa sensação real e esquisita, terrivelmente estranha.” Vale lembrar que Han Kang ganhou o Nobel de Literatura 2024.
Outsider – Rendeu uns pesadelos quando o li há alguns anos. Stephen King sendo prolixo no melhor sentido.
O Vespeiro – Uma fábula infantil sobre a percepção da dor, do medo e da morte, a partir dos relatos de uma criança que sofre com crises de pânico. Bem diferente.
Silent Hill – Não tenho mais palavras pra expressar meu amor por essa franquia. O segundo, principalmente, é tranquilamente o melhor jogo de terror já feito e nada me convence do contrário. Vem, Maria…
Resident Evil 3 – Outra franquia muito querida. O terceiro jogo tem um quê especial de nostalgia por ter me apresentado a um dos vilões mais emblemáticos e assustadores dos games.
Parasite Eve – O público de uma ópera começa a entrar em combustão espontânea quando uma das atrizes inicia sua apresentação, mas, por sorte, a pessoa mais qualificada no recinto sobrevive para investigar que raios está acontecendo. Maravilhoso.
Agora me dei conta de que poderia fazer uma lista até maior, mas basta de esquisitice por hoje.
“O horror decorre da aparição de algo que não tem forma, nome ou sentido. Sua imagem é suspeita. Não sabemos se o próprio texto é um relato descritivo, um sonho, uma ilusão ou a presença de realidades até então desconhecidas ou mal conhecidas.”¹
¹ - Psicanálise: De onde vem a nossa atração pelo terror?
Vou adorar saber: O que te causa estranhamento? Que obras do terror foram marcantes por aí?
🌹🧛♀️
Outsider foi uma grata surpresa das minhas leituras desse 2024. Me deu a sensação de que aquelas histórias que contamos quando crianças podem ser assustadoras até para os adultos, desde que bem trabalhadas. Sempre que o vilão aparecia eu lembrava de minha mãe dizendo que "crianças desobedientes eram jogadas num saco e levadas para longe por um velho que vivia rodando pela cidade."