Marianne se deita de costas, a cabeça no travesseiro, as pernas à mostra esticadas sobre o edredom. Olha fixo para a luminária, o mesmo quebra-luz de anos atrás, verde-oliva.
Connell, ela chama. Sabe ontem à noite, quando a gente estava dançando?
Sei.
Por um instante quer só continuar deitada ali, prolongando o silêncio intenso e fitando a luminária, curtindo a sensação de estar ali naquele quarto de novo com ele e fazendo-o conversar com ela, mas o tempo segue em frente.
O que é que tem?, ele pergunta.
Eu fiz alguma coisa que te incomodou?
Não. O que você está querendo dizer?
Quando você virou as costas e me deixou lá, ela diz. Me senti meio esquisita. Achei que você tinha ido atrás da tal da Niahm ou coisa do tipo, foi por isso que perguntei dela. Sei lá.
Não virei as costas. Perguntei se você queria ir até a área de fumantes e você respondeu que não.
Ela se apoia nos cotovelos e olha pra ele. Ele está enrubescido, as orelhas estão vermelhas.
Você não perguntou, ela diz. Você falou: estou indo para a área de fumantes, e então saiu.
Não, eu perguntei se você queria ir para a área de fumantes e você fez que não.
Vai ver que não te ouvi direito.
Não deve ter ouvido, ele diz. Me lembro muito bem de ter dito isso pra você. Mas a música estava muito alta, pra falar a verdade.
Eles recaem em outro silêncio. Marianne volta a se deitar, olha para a luminária de novo, sente o próprio rosto brilhar.
Me lembrei muito de Pessoas Normais nos últimos dias. Pensei em excesso de reticências, falta de pontos finais, e vice-versa. No acúmulo de não ditos e nos mal-ditos. Naquilo que para um é óbvio e captável entre simples palavras ou até mesmo no próprio silêncio, enquanto para o outro, enigmas se formulam sem fim.
O que você está querendo dizer?
Nada se sabe até que uma pergunta seja feita, externa ou internamente, e não basta o simples querer para saber. Tanto quanto falar, escutar exige uma porção ou mais de… coragem? Falar pressupõe controle com as palavras, escutar abre um espaço no qual o mistério reina até que se ouça o máximo, o mínimo, o vácuo do que o outro é capaz de dizer.
Disto, questionar o anseio imerso no que é expresso por alguém é ser capaz de mostrar parte de uma ignorância que pode ser bonita e gentil, que não se contenta com o imediato mascarado e cria uma posição de disposição, mesmo que com todos os receios, de acolher o que for e aprender a responder, ou silenciar, de um lugar totalmente novo e desconhecido.
Algumas conversas terminam sem que tenham de fato começado. Fragmentos soltos tornam-se cortantes, por vezes rompem os laços. No final, pode-se dizer muito e paradoxalmente não dizer nada.
Vai ver que não te ouvi direito
E então pensa entender a partir do que considera dominar. Lê em diferentes lugares e vê a imagem formada por pedaços compartilhados. Escuta um mosaico e tenta capturar qualquer ponta do novelo na esperança de desenrolá-lo; enrola-se. Repita, então, mas agora sem a música muito alta para nos atrapalhar.
Só estou nervoso, ele diz. Acho que é bastante óbvio que não quero que você vá embora.
Em uma voz minúscula, ela responde: Não acho óbvio o que você quer.
Alteridade, ele me advertiu.
📼 Assistir
PUTZ, sou muito fã do Murakami. Minha querida Sputnik e Kafka à beira-mar são obras inesquecíveis e que de alguma maneira alteraram minha relação com a literatura. Drive My Car é uma adaptação do primeiro conto do livro Homens Sem Mulheres. Um filme absurdamente lindo, em todos os sentidos. 3 horas, ritmo bem lento, cenas, diálogos e silêncios memoráveis. Muito pra ser dito sobre ele, mas o clichê “só sentir” também se aplica perfeitamente.
Já este, deixo todos os avisos de que não é fácil, muito menos agradável. Pleasure traz um reforço interessante da ideia de que o que muitas vezes se parece com um tal empoderamento acaba desembocando em lugares bem perigosos, faz pensar nos limites do consentimento e, ao mesmo tempo, mostra bastidores de uma certa indústria bem problemática, pra dizer o mínimo. Muito bem atuado, parece um documentário.
Um dos meus filmes favoritos está na HBO e eu fiquei tão alegre que assisti no mesmo dia em que o vi no catálogo: Magnólia. Outro que merece um textão! (sim, considero isto um elogio).
📚 Ler
Já fazia tempo que eu queria ler Monsters, e aproveitando que ganhei alguns meses de Kindle Unlimited e ele estava lá, peguei. Foca em duas crianças fora da curva presenciando e se intrometendo na investigação de um crime. Não sei se manterá o bom ritmo, mas por enquanto tem algo de doce em meio às várias esquisitices. Gostando!
Ultimamente tenho estado mais nas leituras “obrigatórias”, teóricas, e confesso que pra mim isso acaba minando um pouco o ritmo com outros gêneros. Haja vontade pra encarar alguns materiais psicanalíticos, viu? Credo, que delícia. Não vou ficar indicando aqui porque são muito específicos, mas quem tiver interesse, pode me escrever que a gente conversa! 🤓
🎧 Ouvir
Fechando com o que o tema que abrimos.
Well, this is an invitation
It's not a threat
If you want communication
That's what you get
I'm talking and talking
But I don't know how to connect