2 | Suspiro
Encantamento
1. sensação de deslumbramento, admiração, grande prazer que se tem como reação a alguma boa qualidade do que se vê, ouve, percebe.
"o e. daquela cena não nos sai da memória"

Ando ponderando um pouco o processo de encantar-se com algo ou alguém, não tanto da maneira mais clichê ou fantasiosa, através de feitiços, poções e afins, mas em encantamento como uma de suas outras definições, essa de um deslumbre que parece nos suspender e transportar para outros lugares e ideias, passados e futuros, quase que nos transformando momentaneamente em outras pessoas, ou, pelo menos, fazendo-nos aspirar que isso aconteça.
Gosto de pensar o encanto como algo que se delonga, se desenvolve em outro tempo, talvez anterior a afetos mais nítidos. Mesmo que rápido para o relógio, para o calendário ou até mesmo para a consciência, um surgimento intimamente vagaroso, zeloso, similar aos momentos em que vamos sendo envolvidos por um relaxamento, de maneira que vai chegando devagar, dando sinais à distância até enfim se acomodar – e causar.
No texto “O delírio e os sonhos na Gradiva” (1907), inaugurando a psicanálise da literatura, Freud escreve sobre o romance de Wilhelm Jensen, Gradiva:
“(...) a história se passava em Pompeia e tratava de um jovem arqueólogo (Norbert Hanhold) que havia trocado o interesse na vida pela dedicação aos vestígios do passado clássico e agora, por uma via indireta bem peculiar, mas consistente, era transportado de volta para a vida.”
Encantado por um baixo-relevo descoberto em Roma, em uma coleção de antiguidades, que retratava uma jovem grega de andar sedutor, o protagonista “não podia explicar para si mesmo o que nele havia despertado sua atenção, apenas sabia que fora atraído por algo, e que esse efeito prosseguia inalterado desde então. Mas sua imaginação não para de se ocupar da imagem. Ele vê algo de hoje nela, como se o artista a tivesse enxergado na rua e capturado a visão conforme a vida.”
Aí fica evidente o caráter inconsciente/transferencial daquilo que nos encanta, marcado pelo reencontro com algo há tempos vivido ou sonhado, com fragmentos que despontam de contatos aparentemente simples, mas que conseguem fazer a tradução descomplicada de complexidades tão particulares. Talvez encantar-se tenha a ver com a sensação de uma recomposição, o (re)encaixe de uma peça outrora vacilante.
Sendo que para cada sujeito, uma espécie de encanto, o que poderia causá-lo? Como seria no um a um?
Possibilidades…
Algumas
Dia desses assisti Shirley, filme baseado em um período da vida da escritora de terror e suspense Shirley Jackson, que retrata um momento – ficcional - em que ela e seu marido Stanley recebem os recém-casados Rose e Fred para passarem um tempo na casa deles.
Focando na relação da Shirley com Rose, a “esposinha”.
Antes de se encontrarem pessoalmente, e sem conhecê-la na intimidade, Rose já nutre por Shirley e seus escritos grande admiração. Quando finalmente se conhecem, Shirley, reclusa e arredia, parte para a intimidação, tentando afastar, provocar, fazer de Rose um mero instrumento, mas, sem muito sucesso em sua tática defensiva, acaba desenvolvendo com a jovem uma relação magnética que, em uma cena bastante simbólica, chega ao ápice do encantamento mútuo, selado por um pacto de sedução e confiança. Os resultados disso são esquisitos e incertos, mas bem ilustrativos. Fica a recomendação.
Outra maneira de se encantar? Musicalmente! Agradeço ao Spotify e as “Descobertas da Semana” por me recomendar Kiltro, um grupo chileno que entre tanta música boa, tem Curicó, que é quase um sonho, e que mesmo quando acaba, ainda fica tocando por aí...
Lugares, é claro, também podem gerar experiências de encantamento, basta notar o quanto alguns passeios ou viagens são marcantes, não só pela mudança ambiental, de rotina ou pelo senso de novidade, mas por proporcionarem momentos de captura únicos, que podem, como a Gradiva, fazer emergir o que há de mais profundo - e sagrado - em cada um.
E nas relações? Fora de uma lógica imediatista, de quantos momentos, conversas, olhares, presenças, ausências, fantasias e sutilezas no geral se constitui o mergulho no vácuo/preenchimento do deslumbre?
Mesmo pensando agora em várias outras pontes para o encantamento (livros, jogos...), antes que a postagem fique longa demais e se perca em devaneios maravilhados, termino por aqui, mas já considerando uma parte 2, deixo mais um pouquinho de Freud, dessa vez em “A Concepção Psicanalítica da Perturbação Psicogênica da Visão” (1910):
“[...] os olhos percebem não só alterações no mundo externo, que são importantes para a preservação da vida, como também características dos objetos que os fazem ser escolhidos como objetos de amor – seus encantos.”
Alguns links dentro e fora do tópico
A “king” Florence voltou, purificadora como sempre!
Assistir Totoro é quase garantia de encantamento
“E o primeiro passo, quando não sei para onde vou, é entender para onde eu gostaria de ir.”
A matéria é um pouco triste, mas o inconsciente é uma coisa maravilhosa mesmo
E obrigada
Pra quem leu, pra quem compartilhou e pras pessoas fofas que entraram em contato comigo durante a semana pra comentar a primeira edição :)
Até a próxima,
Carol.