Colocando de forma bastante resumida, mãe suficientemente boa é um termo que foi usado pelo psicanalista e pediatra inglês Donald Winnicott para se referir à uma mãe que consegue “dosar” os cuidados em relação às particularidades de seu bebê, oportunizando adaptações, autonomia e crescimento suficientes; nem a mais, nem a menos. Sem o romantismo inerente à ideia de maternidade, considera-se que o bebê não precisa de uma mãe toda-perfeita, mas uma que esteja disposta a oferecer seu melhor, mesmo e inclusive com os desentendimentos, falhas e desencontros rotineiros.
Quando me dei conta de que esta newsletter completou um ano mês passado e que neste tempo em que eu queria ter produzido mais, publiquei somente 12 textos, não me senti nem próxima de fazer jus ao nome que escolhi para batizá-la, um nome que tentava convencer a mim mesma de que, com esta empreitada, eu não precisaria colocar a perfeição como critério para sua criação e que, talvez por isso mesmo, faria algo bom o suficiente. Iniciei empolgada com a ideia de partilhar com mais pessoas algo que já fazia para algumas no offline, animada com a resistência dos blogs e dos textos mais longos em meio à tiktokização dos conteúdos, cada vez mais curtinhos. Me esquecia, é claro, da montanha russa de uma vida que não cessa de ser surpreendente e maluca e incrível e infelizmente é meio comum que sejam sacrificadas as coisas mais despretensiosas ou prazerosas em função de uma série de sobreposições obrigatórias ou inventadas por cada um. Hoje, percebo que meu timing para o início disto aqui foi, por um ponto de vista, incrivelmente ruim, mas, condizente com gemidos internos que pediam qualquer movimento em torno de questões que interrompiam o fluxo de minha própria fala.
No penúltimo episódio do ótimo “Isso te diz alguma coisa?”, a convidada, Carla Guerson, conversa sobre “escrever como mania de captar o momento presente, como se a palavra registrasse algo que até então não existe completamente”, e relembra um momento em que foi questionada sobre sua escrita: “você escreve pra fugir?”. Embora a princípio tenha considerado que sim, Carla repensa e chega à outra conclusão, a de que “se a palavra, o registro, é a concretização de algo, seja de um incômodo, seja de um momento, eu acho que a gente escreve pra ficar.”
Achei tão bonito. Pensei nos textos daqui. Rolou um insight daqueles que deixam os olhos meio arregalados, até. Lembrei de uma aula recente que tive sobre o Seminário 20 de Lacan, onde a professora apontou algo semelhante: nomear é fazer existir.
Kiki’s Delivery Service é um dos filmes mais bonitos do Studio Ghibli. Se você não assistiu, fica o alerta de que a partir daqui coloco alguns spoilers. Em dado momento, a querida protagonista, num encontro intimista e agradável com um amigo em potencial, é tomada, de repente, por um abalo diante da aproximação de um grupo de pessoas que os chamam para outro programa. Mesmo com a insistência do amigo para que ela os acompanhe, Kiki prefere ir embora, sozinha. A princípio, dá a impressão de que está simplesmente brava pelo “abandono”, mas logo que chega em casa, percebemos que a bruxinha está tomada por um cansaço profundo. Cai na cama e diz para seu gatinho, Jiji:
- Você sabe o que há de errado comigo? Quando finalmente consegui um amigo, me tornei uma pessoa horrível. Parece que aquela Kiki alegre e gentil se foi.
Passa então os próximos dias entediada, quieta, fria, não entende mais o que Jiji fala pra ela, sente que seus poderes estão enfraquecidos e precisa abrir mão do serviço de entregas que faz graças a capacidade de voar com a vassoura. Acha que se não for bruxa, não “servirá” pra mais nada.
Quando uma outra amiga, artista, volta à cena e leva Kiki para um dia fora da cidade e longe de suas obrigações, surge o seguinte diálogo:
- Na sua idade, eu já tinha decidido que seria artista. Adorava pintar. Mal conseguia dormir por isso. Então, um dia, sem motivo, não conseguia mais pintar. Continuei tentando, mas nunca estava bom. E percebi que estava apenas copiando outras pinturas. Apenas coisas que eu via em outros lugares. Jurei que pintaria minhas próprias ideias.
- Deve ter sido difícil.
- Mas, mesmo depois disso, ainda não é tão fácil. Acho que descobri o que pintar significa, ao menos pra mim. Não precisa de um feitiço ou algo do tipo pra voar?
- Voamos com nosso espírito.
- O espírito da bruxa? Perfeito. É disso que estou falando. O espírito das bruxas. O espírito dos artistas, dos padeiros. Acho que Deus nos dá um dom. Às vezes sofremos por ele.
Parece um pouco aleatória a mistura que estou fazendo aqui, mas toda a bad de Kiki reitera a ideia de que sofremos mais quando não há espaço para a passagem natural de uma ou várias tristezas de qualquer ordem, mesmo quando em contato com o que nos reaviva e alegra, ou até para a significação necessária e individual do que causa a pedra no peito, a incapacidade de voar, o bloqueio para escrever e a própria criação. Suficientemente bem, não só boa, rs.
Final de semana que passou foi o primeiro em um lugar relativamente novo pra mim, e mais uma vez, traçando um paralelo com Kiki (que também parte para uma empreitada em outra cidade), pude perceber movimentos expansivos, outros introspectivos, momentos de muita alegria e entusiasmo e outros de certo vazio e angústia, também. Sempre apreciei o ‘estar sozinha’, só que pude notar: é bem diferente estar só em um lugar em que, mesmo que eu não as encontre, saiba que tem pessoas por perto versus estar em um local que recomeça tantos pontos que inclui coisas como conhecer pouquíssimas pessoas, precisar solicitar informações na rua, pedir para algum transeunte tirar uma foto minha, me apresentar, observar a cidade e as paisagens bonitas que acontecem e mandar fotos pra quem agora está mais longe. É um misto de muitas novidades e emoções diferentes.
Talvez agora, depois de um ano em que finalmente consegui nomear fora daqui um tanto que precisava, consiga trazer pra este espaço um para além das palavras que precisavam de outros endereçamentos, antes. Que seja um bom recomeço, cheio de uma existência possível aqui e no novo lugar :)
Esse texto da
me pegou bem na parte em que ela já alertava que pegaria, hahah. Por uma escrita menos criativa.Acho que como em grande parte dos trabalhos autônomos hoje em dia, uma comunicação sólida e legal na internet é uma das bases do meu, e eu tenho sido ultra leviana em relação à isso, coisa que à partir de terça, graças a gênia Fefe Resende, irá mudar, confio, até porque a newsletter deve/irá entrar como um trabalho também! Sempre quis fazer esse workshop, tô animadíssima com a oportunidade e ainda dá tempo de ser coleguinha de zoom, aqui: comunicação pessoal <3
Terminei de ler Eros, da Anne Carson, e como pode um livro ser tão… indescritível? Ah, agora eu sou afiliada da Amazon, então, se você quiser se aventurar por essa belezura, compre pelo link acima e apoie outras leituras também ;)
Vejo vocês em breve,
Carol.
gostei de tanta coisa nesse texto, de tantas referências <3
"é bem diferente estar só em um lugar em que, mesmo que eu não as encontre, saiba que tem pessoas por perto versus estar em um local que recomeça tantos pontos". Gostei muito do que você escreveu e me tocou bastante essa experiência em um novo lugar. Adorei o paralelo com a Kiki também! Desejo bons recomeços para você <3